Os 42 Juízes eram entidades divinas associadas à vida após a morte no antigo Egito e, especificamente, ao julgamento da alma no Salão da Verdade-Justiça. A alma recitava a Confissão Negativa na presença deles, bem como de outros deuses, e esperava poder prosseguir para o paraíso do Campo de Juncos.
Os antigos egípcios são há muito tempo definidos como uma civilização obcecada pela morte, graças à sua associação com tumbas e múmias, conforme retratado na mídia popular, e, claro, à famosa descoberta da tumba de Tutancâmon por Howard Carter em 1922. Imagens de Anúbis, o deus dos mortos com cabeça de chacal, ou da forma mumificada de Osíris, em preto e verde, também estimularam essa associação no imaginário público.
Na verdade, porém, os egípcios amavam a vida, e sua aparente preocupação com a morte e a vida após a morte era apenas uma expressão disso. Não há evidências de que os antigos egípcios ansiassem pela morte ou ansiassem por morrer de alguma forma – aliás, precisamente o oposto é bastante claro –, e seus elaborados rituais funerários e grandes túmulos repletos de bens funerários não eram uma celebração da morte, mas um aspecto vital da continuação da vida em outro plano de existência, eterno. Para alcançar esse mundo idealizado, no entanto, era preciso ter vivido uma vida virtuosa aprovada por Osíris, o juiz dos mortos, e pelos 42 Juízes que presidiam com Ele o Salão da Verdade-Justiça na vida após a morte.
VIDA APÓS A MORTE
Os egípcios acreditavam que sua terra era a melhor do mundo, criada pelos deuses e dada a eles como um presente para ser desfrutado. Eles eram tão profundamente apegados aos seus lares, família e comunidade que os soldados do exército egípcio tinham a garantia de que seus corpos seriam devolvidos das campanhas, pois sentiam que, se morressem em uma terra estrangeira, teriam mais dificuldade – ou possivelmente nenhuma chance – de alcançar a imortalidade na vida após a morte.
Essa vida após a morte, conhecida como Campo dos Juncos (ou Aaru em egípcio antigo), era um reflexo perfeito da vida terrena. A estudiosa Rosalie David descreve a terra que aguardava os egípcios após a morte:
Acreditava-se que o reino subterrâneo de Osíris era um lugar de vegetação exuberante, com primavera eterna, colheitas ininterruptas e ausência de dor ou sofrimento. Às vezes chamado de Campo dos Juncos, era concebido como uma imagem espelhada da área cultivada no Egito, onde ricos e pobres recebiam lotes de terra nos quais se esperava que cultivassem suas plantações. A localização desse reino era fixada abaixo do horizonte ocidental ou em um grupo de ilhas a oeste.
Para chegar a essa terra, o recém-falecido precisava ser enterrado adequadamente, com todos os ritos inerentes à sua posição social. Os ritos funerários tinham de ser rigorosamente observados para preservar o corpo, que, acreditava-se, a alma precisaria para receber sustento na próxima vida.
Uma vez preparado o corpo e devidamente sepultado, iniciava-se a jornada da alma pela vida após a morte. Textos funerários dentro do túmulo permitiam que a alma soubesse quem era, o que havia acontecido e o que fazer em seguida. Os primeiros foram os Textos das Pirâmides (c. 2400-2300 a.C.), que evoluíram para os Textos dos Caixões (c. 2134-2040 a.C.) e foram totalmente desenvolvidos como o Livro Egípcio dos Mortos (c. 1550-1070 a.C.) durante o período do Novo Império (c. 1570-1069 a.C.). O deus Anúbis saudava a alma recém-falecida no túmulo e a conduzia ao Salão da Verdade, onde seria julgada por Osíris, e um aspecto importante desse julgamento era a conferência com as entidades conhecidas como Os 42 Juízes.
OS 42 JUÍZES
Os 42 Juízes eram os seres divinos da vida após a morte egípcia que presidiam o Salão da Verdade-Justiça, onde o grande deus supremo Osíris julgava os mortos. A alma do falecido era convocada a prestar confissão dos atos praticados em vida e a ter o coração pesado na Balança da Justiça contra a pena branca de Maat, deusa da Verdade e do Equilíbrio harmonioso. Se o coração do falecido fosse mais leve do que essa pena, ele era admitido à vida eterna no Campo dos Juncos; se, contrariamente, o coração fosse encontrado mais pesado que a pena, era jogado ao chão, onde era devorado pelo monstro Amemait (também conhecido como Ammut, “o glutão”, parte leão, parte hipopótamo e parte crocodilo) e a alma da pessoa então deixaria de existir. A inexistência, em vez de um mundo após a morte de tormento, era o maior medo dos antigos egípcios.
Embora Osíris fosse o principal juiz dos mortos, os 42 Juízes reuniam-se em conselho com ele para determinar a dignidade da alma em desfrutar da existência contínua. Eles representavam as 42 províncias do Alto e Baixo Egito, e cada juiz era responsável por considerar um aspecto específico da consciência do falecido. Destes, havia nove grandes juízes:
• Rá – o deus supremo do sol em sua outra forma de Atum
• Shu – o deus do ar e da paz
• Tefnut – deusa da umidade
• Geb – deus da terra
• Nut – deusa do céu
• Ísis – deusa da vida, fertilidade, magia
• Néftis – irmã de Ísis, deusa dos mortos
• Hórus – deus do sol e do céu
• Hathor – deusa do amor, fertilidade, alegria
Dos outros juízes, eles eram retratados como seres terríveis e inspiradores, com nomes como o Esmagador de Ossos, o Devorador de Entranhas, o Leão Duplo, o Rosto Fedorento e o Devorador de Sombras, entre outros. Os 42 Juízes, no entanto, não eram todos de aparência horripilante e terrível, mas pareceriam assim para aquela alma que enfrentava a condenação em vez da recompensa por uma vida bem vivida. Esperava-se que a alma fosse capaz de recitar a Confissão Negativa (também conhecida como Declaração de Inocência) em defesa da própria vida, a fim de ser considerada digna de passar para o Campo de Juncos.

A CONFISSÃO NEGATIVA
A Confissão Negativa era recitada em conjunto com a pesagem do coração para provar a virtude de alguém. Não havia um verso definido conhecido como “a Confissão Negativa” – cada verso, incluído em textos funerários, era adaptado ao indivíduo. Um soldado não recitaria a mesma confissão que um comerciante ou escriba. O mais famoso deles é o Papiro de Ani, texto do Livro Egípcio dos Mortos, composto por volta de 1250 a.C. Cada confissão é dirigida a um deus distinto e cada deus correspondia a um nomo (distrito) diferente do Egito:
1. Salve, Usekh-nemmt, que vem de Anu, eu não cometi pecado.
2. Salve, Hept-khet, que vem de Kher-aha, eu não cometi roubo com violência.
3. Salve, Fenti, que vens de Khemenu, eu não roubei.
4. Salve, Am-khaibit, que vens de Qernet, eu não matei homens e mulheres.
5. Salve, Neha-her, que vem de Rasta, eu não roubei grãos.
6. Salve, Ruruti, que vens do Céu, eu não roubei oferendas.
7. Salve, Arfi-em-khet, que vem de Suat, eu não roubei a propriedade de Deus.
8. Salve, Neba, que vais e vens, eu não disse mentiras.
9. Salve, Set-qesu, que vem de Hensu, eu não levei comida.
10. Salve, Utu-nesert, que vem de Het-ka-Ptah, eu não proferi maldições.
11. Salve, Qerrti, que vem de Amentet, eu não cometi adultério.
12. Salve, Hraf-haf, que sais da tua caverna, não fiz ninguém chorar.
13. Salve, Basti, que vens de Bast, eu não comi o coração.
14. Salve, Ta-retiu, que surge da noite, eu não ataquei homem algum.
15. Salve, Unem-snef, que sais da câmara de execução, eu não sou um homem de mentiras.
16. Salve, Unem-besek, que vem de Mabit, eu não roubei terra cultivada.
17. Salve, Neb- Maat , que vem de Maati, eu não fui um bisbilhoteiro.
18. Salve, Tenemiu, que vem de Bast, eu não caluniei ninguém.
19. Salve, Sertiu, que vem de Anu, eu não fiquei irado sem justa causa.
20. Salve, Tutu, que vem de Ati, eu não depravei a esposa de nenhum homem.
21. Salve, Uamenti, que sais da câmara de Khebt, eu não depravei as esposas de outros homens.
22. Salve, Maa-antuf, que vens de Per-Menu, eu não me poluí.
23. Salve, Her-uru, que vem de Nehatu, eu não aterrorizei ninguém.
24. Salve, Khemiu, que vem de Kaui, eu não transgredi a lei.
25. Salve, Shet-kheru, que vem de Urit, eu não fiquei irado.
26. Salve, Nekhenu, que vem de Heqat, não fechei meus ouvidos às palavras da verdade.
27. Salve, Kenemti, que vens de Kenmet, eu não blasfemei.
28. Salve, An-hetep-f, que vem de Sau, eu não sou um homem violento.
29. Salve, Sera-kheru, que vem de Unaset, eu não fui um instigador de conflitos.
30. Salve, Neb-heru, que sais de Netchfet, não agi com pressa indevida.
31. Salve, Sekhriu, que vem de Uten, eu não me intrometi nos assuntos dos outros.
32. Salve, Neb-Abui, que vem de Sauti, eu não multipliquei minhas palavras ao falar.
33. Salve, Nefer-Tem, que vem de Het-ka-Ptah, eu não fiz nada de errado, eu não fiz nada de mal.
34. Salve, Tem-Sepu, que vem de Tetu, eu não pratiquei feitiçaria contra o rei.
35. Salve, Ari-em-ab-f, que vens de Tebu, eu nunca interrompi o fluxo de água de um vizinho.
36. Salve, Ahi, que vens de Nu, eu nunca levantei minha voz.
37. Salve, Uatch-rekhit, que vem de Sau, eu não amaldiçoei a Deus.
38. Salve, Neheb-ka, que sais da tua caverna, eu não agi com arrogância.
39. Salve, Neheb-nefert, que sais da tua caverna, eu não roubei o pão dos deuses.
40. Salve, Tcheser-tep, que sai do santuário, eu não levei os bolos de khenfu dos espíritos dos mortos.
41. Salve, An-af, que vem de Maati! Eu não roubei o pão da criança, nem tratei com desprezo o deus da minha cidade.
42. Salve, Hetch-abhu, que vem de Ta-she, eu não matei o gado pertencente ao deus.
Essa confissão é semelhante a outras em sua forma básica e inclui declarações como: “Eu não roubei. Eu não matei pessoas. Eu não roubei a propriedade de um deus. Eu não pronunciei mentiras. Eu não desencaminhei ninguém. Eu não causei terror. Eu não deixei ninguém com fome…” Uma frase que aparece com frequência é “Eu não aprendi o que não é”, também às vezes traduzida como “Eu não aprendi as coisas que não são”, que se referia à crença em falsidades ou, mais precisamente, em falsas verdades, que eram qualquer coisa contrária à vontade dos deuses, que poderia parecer verdadeira para uma pessoa, mas não era.
Por exemplo, esperava-se que um homem que tivesse perdido recentemente a esposa lamentasse a perda e tivesse direito a um período de luto, mas se amaldiçoasse os deuses pela perda e parasse de contribuir para a comunidade devido à sua amargura seria considerado um erro. Ele teria “aprendido coisas que não existem” ao acreditar que tinha o direito de perseverar em sua dor, em vez de ser grato pelo tempo que sua esposa esteve com ele e pelas muitas outras dádivas que os deuses lhe davam diariamente. A Confissão Negativa permitia à alma a oportunidade de provar que compreendia isso e que vivera de acordo com a vontade dos deuses, não de acordo com seu próprio entendimento.
CONCLUSÃO
O Livro Egípcio dos Mortos fornece o quadro mais abrangente dos 42 Juízes, bem como os encantamentos da Confissão Negativa. Segundo a estudiosa Salima Ikram:
“Assim como nos textos funerários anteriores, o Livro dos Mortos servia para prover, proteger e guiar os mortos para o Além, que se localizava em grande parte no Campo dos Juncos, um Egito idealizado. O capítulo 125 foi uma inovação e talvez um dos feitiços mais importantes a serem adicionados, pois parece refletir uma mudança na moralidade. Este capítulo, acompanhado por uma vinheta, mostra o falecido diante de Osíris e quarenta e dois juízes, cada um representando um aspecto diferente de maat. Parte do ritual consistia em nomear corretamente cada juiz e fazer uma confissão negativa.”
Após a Confissão Negativa ser feita pela alma do falecido e o coração pesado na balança, os 42 Juízes reuniam-se em conferência com Osíris, presidido pelo deus da sabedoria, Toth, para proferir o julgamento final. Se a alma fosse considerada digna, segundo alguns relatos, era conduzida para fora do salão em direção ao Lago dos Lírios, onde encontraria a criatura conhecida como Hraf-haf (que significa Aquele-Que-Olha-Para-Trás-Dele), um barqueiro mal-humorado e ofensivo com quem o falecido precisava encontrar uma maneira de ser gentil e cordial para ser levado de barco até as margens do Campo de Juncos e à vida eterna.
Tendo passado pelo Salão da Verdade-Justiça e, finalmente, provado seu valor através da bondade para com o cruel Hraf-Haf, as almas, enfim, encontrariam paz e desfrutariam de uma eternidade em êxtase. O Campo de Juncos refletia perfeitamente o mundo que alguém havia desfrutado em sua existência terrena, incluindo as árvores e flores que havia plantado, seu lar e aqueles entes queridos que já haviam falecido. Tudo o que um antigo egípcio precisava fazer para alcançar essa felicidade eterna era chegar ao Salão da Verdade-Justiça com o coração mais leve do que uma pena, após ter vivido uma vida digna da aprovação de Osíris e dos 42 Juízes.

Coincidência – ou não? -, há na cidade totonaca de Cempoala (localizada no México) uma construção intrigante; 42 Tronos onde criminosos ou simples acusados de algum delito eram julgados por sacerdotes e militares dessa cidade. Caso os acusados fossem condenados, eram mortos ali mesmo. Seriam esses 42 tronos uma referência aos 42 Juízes Divinos que nos julgam no post-mortem?